sábado, 30 de outubro de 2010

AOS OLHOS DE DEUS, NEM SEMPRE OS ÚLTIMOS SERÃO OS PRIMEIROS - Djalma Filho


AOS OLHOS DE DEUS, NEM SEMPRE OS ÚLTIMOS SERÃO OS PRIMEIROS
(Djalma Filho)


Conheci Deus, sim:
    - enlouqueci?...

Era Deus, sim
-    há pouco -,
com os dedos em paz e amor, insistindo sono às minha pálpebras,
pressionando-as para o sul, querendo, sim, fecha-las!...

com Ele falei, humanamente, o mais que pude
                e
em fração de segundos, Dele, tornei-me íntimo
        Perdemos a vergonha
    e contamos
        - um ao outro -
            segredos e mais segredos

                [Era Ele!]

Ele deixou-me escapar
-    não sei se por ou sem querer -
que jamais fora brasileiro,
mas que sentia uma vontade louca de passar as Suas férias na Bahia!...

[os curiosos, espantados, descerram a janela da minha cara sã]
   
Há pouco, conheci Deus!

                [Era Ele!]

[os amigos lúcidos, agora, dizem que pirei de vez!]

                [Era Ele!]

e Ele falou-me das Suas angustias
    - era eu quem deveria estar deitado no divã
dizendo mais que uma matraca na quarta-feira de cinzas.

                [Era Ele!]

e deixou-me escapar
-    sem nenhum estereótipo -
que havia sido um ser absolutamente nada, um ser absolutamente tudo:
um sem-teto, um sem-cidade, um sem-pátria,
        e, principalmente,
            um sem-espelho,
    só para não poder constatar as desgraças das semelhanças!...

Em pouquíssimos segundos,
        não só O achei muito divertido,
    como, confesso, necessitado
de, Dele, me tornar Seu vigia, Seu confessor e analista

Nos breves poucos segundos,
- decerto, meus últimos segundos -,
saímos para falar muita bobagem, entre um gole e outro de cerveja.
Até que um amigo
        - aquele, o mais preocupado com o meu surto -,
com a língua tropeçando pelo excesso álcool e pela falta dos óculos,
leu duas laudas e meia de páginas,
                em minha homenagem,
provocando cochilos aos que não Nos viam,
enquanto Dele eu me despedia ao som de um blues azul,
em pura noite de jazz!...

Por fim,
            na última Salve Rainha,
Ele me disse ainda mais:
que, a partir de então, eu iria me sentir bem menos cansado e bem mais eterno,
que as minhas pálpebras, fechadas, foi um acaso
    - Ele as fechou, sim, sem querer!

    [Era Ele!]

Conheci Deus, sim:
    - enlouqueci?





quinta-feira, 28 de outubro de 2010

POEMA DO MENINO JESUS - Fernando Pessoa (por Maria Bethania)

TODAS AS CARTAS DE AMOR... - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)


TODAS AS CARTAS DE AMOR...
Fernando Pessoa
(Poesias de Álvaro de Campos)

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos, 21/10/1935