segunda-feira, 28 de junho de 2010

CONSTRUÇÃO - Chico Buarque de Holanda


(cena da peça Muro de Arrimo, de Carlos Queiroz Telles)

CONSTRUÇÃO
(Chico Buarque de Holanda)

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague

A COLHER - Djalma Filho


A COLHER
(Djalma Filho)


co'aquela colher de pedreiro,
chuleei,
pintei e bordei,
fiz arte
[...]
abracei Maria,
construí Maria,
reboquei Maria
e Brasis

[!]

aconteci
de um pai pedreiro
e de uma mãe gasta pela casa construída
- a gosto

[...]

também pedreiro,
fui aumentando o mundo, de casas,
até descobrir
[a cada casa finda]
que lares continuavam,
que cidades continuavam,
que Brasis continuavam

[...]

um dia,
numa bicicleta comprada à prestação
[sete reais cada mês]
ganhei o mundo

[!]

no selim,
a mesma colher de pedreiro
[me dada por um Deus enciumado]
por ter aprendido
[Dele]
a arte de construir
casas,
Marias
e Brasis
melhor, bem melhor que Ele

[!]

cansado de ir achando o mundo
parei
para tomar um trago,
voltado
[pernas pra que te quero]
haviam roubado as minhas mãos do selim da bicicleta

[!]

e procurei a minha colher de pedreiro até o fim
do mundo

[...]

Deus estava vingado

[!]

eu,
que pensava que as cidades acabavam
na última curva da estrada,
que imaginava o fim da terra
ao primeiro sinal de mar,
descobri que no mundo não há uma Maria igual à Maria
que abracei,
que construí,
que reboquei

[!]

por onde anda aquela colher de pedreiro
[?]
onde estão as minhas mãos
[?]

como construir mais casas,
como construir mais Marias
como construir mais Brasis
[?]

aqui,
no meio do mundo,
pedreiro hei de ficar
ah, que saudade danada da casa que construí
para lar

[!]

não irei mais acenar,
precário
de extremidades de braços:
falta-me a colher de pedreiro
nas mãos

[!]


Nota do autor: Encontrei Ody - pedreiro de vocabulário vasto e com fome de leitura - num domingo, pela manhã, injuriado: haviam lhe roubado a sua colher de pedreiro. Contou-me. Assim, aproveitei-me, descaradamente da história.